29 maio, 2008

Vai passar

Imaginem dez por cento da massa da Parada Gay e dez por cento da marcha da Bispa contrabandista. Isso daria mais ou menos – por baixo – umas quinhentas mil cabeças.

Sim, cabeças. Porque, antes de qualquer coisa, são “princípios de reunião e de unidades”; todos iguais, ordeiros, pacíficos e coloridos. Tudo gado. E o Stédile querendo fazer revolução no campo, acorda Stédile! Se a energia e a disposição desse povo-gado se voltassem para Brasília, em vez de se voltar para as próprias bundas (ou almas, dá no mesmo), teríamos no mínimo um maio de 68 elevado à vigésima potência.

Não ia sobrar um mensaleiro em Brasília, e de Brasília o fluxo invadiria as festas da Hebe Camargo no Morumbi (um alívio para a velha apresentadora: afinal, ela teria alguém para acusar de ladrão); e, dos altos do Morumbi, a coisa desceria no sentido sul, via Hebraica, Shopping Iguatemi e clube Pinheiros até alcançar o prédio da Daslu, na Vila Olímpia, ia ser uma faxina exemplar.

Invertido o ponto de vista, não sobraria um roteirista no Projac, a coisa ia ser pra valer. Em Paraty haveria uma insurgência no solar do príncipe dom Joãozinho, e todos os escritores e puxa-sacos reais teriam de escrever feito gente grande: sem rimas, planilhas e trocadilhos.

Nem Unibanco, e nem Petrobrás para patrocinar a picaretagem. A nova massa de insurgentes contra Jesus e contra os bundões iria seqüestrar os mocassins de franjinhas dos coxinhas da grande imprensa. Não sobraria um aforismo “pequenas empresas, grandes negócios” para contar a história. As camisetas Pólo dos mauricinhos líricos não serviriam nem para limpar o vidro de seus caixas eletrônicos. Doze por cento somente lá em Cannes que os pariu!

Talvez por conta do ímpeto da própria juventude, 1968 agoniza até hoje. Creio que escapou um dado fundamental aos jovens daquela época. Lembram do autor de “O casamento”? Nelson Rodrigues aconselhava aos jovens: “Envelheçam, envelheçam”.

O passo seguinte está implícito: morram, morram. Aí está: 1968 esqueceu da morte. Os jovens de 68 se abstiveram da morte, e por isso viraram oxímoros, espectros de si mesmos. A vida só é bela porque não tem o alto valor que geralmente lhe atribuímos. A morte devia pesar mais na hora da contabilidade. Uma vez que, além de ser corretiva e resplandecente, prescinde de organização e investimentos públicos. Tem uma reverberação meio incômoda no começo, um trinado meio esquisito, mas dá para suportar: diferentemente da barulheira dos trios elétricos e da Ivete Sangalo.

Somente assim, aproximada da morte, a beleza poderia de fato voltar às ruas. A beleza dos cemitérios e da liberdade. Não essa falsidade-curral colorida, mas a beleza dos jovens que voltariam a ser jovens novamente e que, em vez de exigir respeito do português da padaria, ordem, regras e disciplina e um Jesus quentinho para salvá-los da babaquice, exigiriam o impossível, a eternidade, a imaginação de fato no poder. Para que o poder? Ora, para ignorá-lo, para enterrá-lo.

Dez por cento dessa massa amorfa e bovina seria mais do que o suficiente para extinguir com as esperanças, a “qualidade de vida” e o futuro bundão dos outros noventa por cento de eunucos coloridos. Ao todo um rebanho de quase cinco milhões. Nenhuma confusão, marcha pacífica. Ora, pro inferno gado amaldiçoado! Uma noite de maio, e nada mais.

Aí é que eu queria ver. Eis o grande confronto: a subjetividade contra a babaquice. A boiada iria estourar, arrebentaria a metafísica e enfiaria o sexo no único buraco excitante e realmente confiável que existe: o túmulo. Bastaria uma noite de maio, apenas. Doze horas de um Rolex dourado. Uma única noite. Em vez de celebrar o turismo de eventos e o Jesus quentinho que a Bispa tesuda contrabandeou da cruz direto para os cofres de sua Igreja (sediada na prisão de Miami), em vez disso, a massa de insurgentes contra Jesus e contra os bundões, celebraria Baudelaire e As Flores do mal.

Imaginem o grand finale: “Sonhando o belo que tortura/

Eu não terei a honra,ao que cismo,

De dar o meu nome ao abismo

Que há de ser minha sepultura.”

texto de:

Marcelo Mirisola

em

"Doze horas de um Rolex dourado"

http://congressoemfoco.ig.com.br/DetArticulistas.aspx?articulista=469&colunista=22

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